quarta-feira, 17 de maio de 2017

Minha infância

Apesar de ter vivido na cidade minha vida toda, tive uma infância bastante feliz.
Brinquei de tudo que é coisa que se diga que é de criança, bola, bete, pique-pega, pique-esconde, pipa, estilingue, bicicleta, skate, patins, etc. e suas incontáveis variações, pois quando alguma brincadeira não se adequava era fácil resolver, era só inventar alguma coisa. A bola de futebol virava bola de vôlei, basquete, handebol, queimada e vice-versa. O pique-pega virava pique-altinho, pique-esconde, salve eu, o patins dava pra dois, o skate virava carro, bicicleta virava moto e caçambas de entulho viravam esconderijo, forte ou obstáculo, tudo dependia da brincadeira e da imaginação. As regras mudavam de acordo com a necessidade, se o dono da bola perdia e queria levar a bola embora, “Zera os gol! Ué!”, alguém sugeria. O importante era que a copa do mundo de futebol ia continuar, ou começar de novo pela décima vez. 
Recriávamos a história refazendo grandes finais. Roberto Baggio, de 94, perdeu o gol inúmeras vezes, só para ser zoado outra vez, e até acertou algumas vezes também, por não aguentar mais a zoação. Se o problema era ter sido sorteado como “pego”, haviam as negociações diplomáticas para diminuir os conflitos de interesse entre as partes envolvidas. Muitas vezes um ou dois se “sacrificavam” no lugar daquele que ameaçava jogar uma bomba atômica na brincadeira e ir embora, às vezes era necessário ceder um pouco do território para manter a paz e a harmonia. E mesmo quando a paz não era possível a guerra declarada durava no máximo alguns minutos, afinal, sempre tinha outra brincadeira, ou se inventava uma. Claro que existia uma rotina de trabalho diária. Acordar cedo, ir para a escola, voltar, almoçar, esperar a eternidade que durava “o quilo”, para só então ir para a rua brincar. E ainda existiam as atividades extra-curriculares, natação obrigatória duas ou três vezes na semana, que eu adorava, mas largar a brincadeira para ir nadar, era tortura. E idas ao mercado que duravam longuíssimos 10 minutos para comprar extrato de tomate, "...pra fazer macarrão menino! Já falei!". Pior ainda quando esquecia o que era pra comprar no meio do caminho, tinha que voltar pra perguntar, isso estendia a jornada em mais cinco eternos minutos.
Havia também, algumas vezes no ano, as visitas extra-terrestres. Alienígenas que vinham dos confins do universo, também conhecidos como primo chato, que vinha visitar e precisavam, por ordem superior, serem incluídos nas brincadeiras onde cada um já tinha seu papel definido, se não, teríamos que acertar as contas com o "mestre do universo", a temida mãe. Era possível ouvir seu chamado (ou grito mesmo) a quilômetros de distância (na esquina de cima), e ele era capaz de parar o mundo por alguns instantes, não ouvi-lo poderia despertar a ira da mãe, gerando consequências temidas até pelos mais bravos guerreiros espaciais, como ser abduzido pela nave mãe para a eternidade, que também pode ser entendido como passar alguns minutos dentro de casa, só os fortes sobreviviam. Algumas vezes os mestres do universo saiam de suas naves para se reunirem no espaço exterior, ou seja, sentavam-se nas calçadas em frente as casas e conversavam, enquanto nossas batalhas se transformavam em guerras frias, pois se houvesse algo em nossas disputas que perturbasse a paz dos mestres do universo, as consequências seriam impensáveis. Havia relatos que crianças que nunca mais foram vistas, até o dia seguinte, por perturbarem essa paz. Quando essas crianças retornavam do limbo era necessário reinseri-las, pois passar um dia inteiro recluso podia mudar a cabeça de alguém. Ao final do dia, após o último chamado do mestre do universo, que invariavelmente continha o nome do guerreiro condenado seguido por um sonoro “VEM PRA DENTRO AGORA MENINO!”, acontecia um estranho fenômeno. Após passar por algumas provas de habilidade, como entrar em casa sem sujar nada e tomar banho e ficar realmente limpo, o mestre do universo se transformava em outro ser, que era chamado apenas de mãe. Esse ser diferente primeiro cuidava de nossas feridas de "batalha", os esfolados, arranhões e ralados, geralmente com uma magia que consistia na seguinte feitiçaria: primeiro se colocava uma mistura de compostos químicos que ardia até na alma, o temido mertiolate, mas aí vinha a parte mágica da coisa, com apenas um sopro encantado a mãe fazia a dor excruciante que quase parava o coração ir embora, aí ela nos dava um carinho que tinha o poder de afastar qualquer mal, por pior que fosse. Então ela nos alimentava e nos dava segurança para conseguir dormir em paz, e mesmo que nosso sono fosse perturbado por qualquer coisa, era só chamar a mãe que ela vinha mais rápido que o “The Flash”, com sua armadura e seu elmo que mais pareciam uma camisola velha e o cabelo em pé, mas eu tinha certeza que eram uma armadura e um elmo, pois não importava o que tinha me acordado, ela enfrentava qualquer coisa. Às vezes ela trazia outro guerreiro, “o pai”, que geralmente passava o dia fora enfrentando outras batalhas, mas que aparecia quando necessário. De tempos em tempos o pai trazia de suas explorações e batalhas objetos incríveis e misteriosos, arcas cheias de tesouros que eu adorava abrir, só para ver o que tinha dentro. Meus mestres do universo diziam: "Menino! Já desmontou outro rádio... Vem cá moleque!!!" É... A caça ao tesouro tinha seus perigos.
O pai ainda conta sobre muitas de suas batalhas, sempre corajoso e destemido como a mãe.
Hoje, depois de muitas aventuras, sou eu quem veste armadura e elmo para defender minha família, e espero fazer tão bem quanto meus guerreiros, meus pais, o fizeram um dia, e ainda fazem.
Bem... Esses foram alguns pedaços das muitas histórias que tenho dos meu anos como guerreiro espacial, piloto, arqueiro, super-herói, vingador, construtor, demolidor, bombeiro, mestre kung-fu, astronauta e Indiana Jones, entre outras tantas profissões que tive somente na minha infância, cada dia.
Peço diariamente ao Pai, o do céu, para me dar sabedoria, força e saúde para que eu possa ser um guerreiro tão bom e fiel quanto os meus são... 

"Obrigado meus guerreiros, mãe e pai! Guerreiro Jean Pessôa se apresentando para as próximas aventuras!"

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